segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Zíngaro - o artista imponderável


Carlos Zíngaro é um dos mais destacados músicos das novas correntes estéticas em Portugal, com uma riquíssima experiência artística ao longo de 40 anos de intensa e diversificada actividade musical. Nesta entrevista explana as suas vivências, ideias e pensamentos.

Imagine que não sabia nada a seu respeito. Como se definiria artisticamente?
Um simples indivíduo que sempre tentou encontrar outras formas de fazer e de existir. Que teimosamente insistiu na não evidência e na anti-rotina ainda acreditando ser possível hoje, aqui… Que continua a utilizar um secular instrumento de madeira quando cada vez mais os fascínios são para as “novas tecnologias” (que afinal também sempre o atraíram…).

O seu percurso musical, com 30 anos de intensa actividade, tem sido feito de forma independente mas com muitas resistências e alguma abnegação. Considera que foi devido ao país que temos ou por causa da linguagem musical outsider que tem vindo a praticar?
Permito-me referir que serão antes 43 anos visto ter começado a ser profissional (Orquestra Universitária de Música de Câmara) aos 13… O ser-se independente é muito relativo pois vão sendo sempre criadas dependências várias – se as primeiras “resistências” começaram pelos familiares e professores, tentei sempre, mal ou bem, o não corte com “quem não compreendia” as minhas insistências e roturas. O recusar integrar qualquer tipo de “escola” ou área parametrada e definida levou-me a confrontos difíceis de resolver por não ser “enquadrável” – apesar de, pontualmente, ter sempre “experimentado” as áreas mais distintas e reconhecíveis. Do rock ao fado, do MPP ao jazz, do erudito ao techno…

O Carlos “Zíngaro” foi um dos pioneiros do free jazz em Portugal, com o grupo Plexus e outras formações que fizeram história na chamada música de “vanguarda”. Porém, a sua formação vem da música clássica. Olhando para trás, como se processou essa vontade de ruptura e de experimentação?
Como já referido, a minha vontade de “experimentar”, a rebeldia em aceitar determinações “pré-fabricadas”, e um ensino claustrofóbico e castrante em que tudo o que era alheio à chamada “música clássica” não existia (infelizmente tendência já observada em alguns jovens docentes na actualidade!), empurravam-me irresistivelmente para o “pecado”… O “free jazz” surge também como reacção política, grito de revolta contra um sistema colonial violento e mortífero.

Os seus interesses musicais espartilham-se em diversas áreas e tem confessado influências que vão de John Cage a Béla Bartók, de Ornette Coleman a Jimi Hendrix ou Morton Feldman. No momento da criação, como processa e funde todas estas referências?
Difícil me é determinar um percurso programático quando me decido a “criar”. Sempre fui alheio ao conceito tradicional de “obra”, de “composição”, pelo que nunca me foi consciente a definição de percursos consoante esta ou aquela influência, este ou aquele “estilo”. Por que até quando componho improviso – apesar de a imediatez e o risco serem distintos – haverá sempre, do imenso aglomerado de influências, experiências e vivências (tantas vezes alheias ao acto musical), a necessidade de ser coerente e consequente, tentando um percurso pessoal que não seja mera colagem referencial e estilística.

O Carlos “Zíngaro” tem estado ligado intimamente às novas correntes estéticas da música de vanguarda dos últimos 30 anos, como interpreta e caracteriza a evolução das mesmas durante esse período de tempo?
Hoje em dia seremos inevitavelmente esmagados por uma industrialização, globalização, inflação de produtos que, aparentemente diversificando a escolha na prática empurram o indivíduo, seja ele produtor ou receptor, para escolhas que dificilmente têm a ver com opções personalizadas e autónomas. Se por um lado a miscigenação, a “mestiçagem”, poderão dar materiais riquíssimos, por outro lado a confusão e a indiferença vão-se instalando insidiosas sempre à espera do próximo entretenimento suficientemente apelativo ou social para que nos desloquemos dos nossos lugares comuns. Se analisarmos a história das artes no decorrer do último século e verificarmos o que foi feito por futuristas, dadaistas, surrealistas, construtivistas e outros inúmeros “istas” que sempre tentaram a alternativa ao instituído, verificamos como estamos pobres hoje.

Numa visão crítica descomplexada, concorda que o conceito de vanguarda está caduco hoje em dia? Se sim, a que outro conceito recorreria para classificar a música que pratica?
Como já alguém o disse sempre me pareceu “avant garde” um termo demasiado próximo de ficção científica ou antecipação mais ou menos fantástica… Para mim sempre se tratou do hoje, agora, actual e actuante na medida do possível. Nunca me interessaram – como evidente pelo exposto anteriormente – etiquetas, títulos ou exaustivas definições do que faço ou porquê. Sem pretender ser panfletário recordo que, toda uma movimentação sonora mais ou menos subterrânea e marginalizada senão ignorada, mais cedo ou mais tarde acaba por ser “reciclada” e adaptada pelo main stream – seja pelo pop/rock, nas bandas sonoras de tantos filmes de grande budget, como por hiper produções “eruditas” de altíssimo prestígio social…

A sua experiência de colaborações com músicos de renome mundial tem sido vasta e diversificada: Derek Bailey, Evan Parker, Tom Cora, Anthony Braxton, Peter Kowald, Steve Lacy, entre outros. Estas colaborações, para além do enriquecimento artístico que significam, resultam também de uma inerente necessidade de trocar experiências, de alargar fronteiras?
Sempre! Posso considerar-me um afortunado por ter tido a oportunidade de cruzar caminhos, tanto humanos como artísticos, com alguns dos grandes nomes das novas músicas. Quando, nos finais de 1960 e inícios de 1970 lia e ouvia alguns destes nomes à distância de quilómetros e da filtragem de um sistema esclerosado, dificilmente me seria imaginar que algum tempo depois poderia ser seu parceiro e colaborador. Ter a honra de ser considerado um amigo e um igual…

Compõe música para teatro e bailado. Consegue definir as fronteiras entre a composição musical e a sua actividade de improvisador ou é difícil destrinçar um e outro processo criativo?
Idealmente não deveria haver diferenças pois, como já referido, considero a actividade de improvisação e composição simultâneas e/ou complementares. Infelizmente na prática, e falando das músicas de cena ou “funcionais”, raramente é esse o caso pois é-se frequentemente conduzido para situações de ilustração sonora, ambientes décor, pontuação de acção ou transições “tapa buracos”. Depende depois do compositor a “arte” em conseguir ainda imprimir algum cunho pessoal ou resquícios de autonomia criativa a algo que mais não é que encomenda a integrar / servir “arte maior”.

É um cliché dizer-se que a improvisação mais não é do que um processo de composição instantânea (em tempo real), ou é muito mais do que isso?
“Mais não é…” inevitavelmente será a (errada) chave pois é muito mais! Apesar de pessoalmente fazer equivaler, em termos de prática composicional, as duas abordagens, ou de, sem dúvida privilegiando o aleatório e a improvisação, tento, mesmo que com um mínimo de parâmetros, conseguir outros processos musicais que dificilmente atingiria com uma disciplina mais académica ou matemática. Mantenho que nunca se conseguirá o fulgor, a “verdade”, energia, “elan” na interpretação de obra escrita que se consegue frequentemente na improvisação. Improvisação que se trabalha como técnica que é! Que se pensa e analisa como outra qualquer técnica ou forma.

É sabido que algumas correntes das músicas experimentais recorrem à renovação das linguagens através da apropriação e reciclagem de referências estéticas anteriores. Nesse sentido, concorda com a definição do Brian Eno quando diz que a música de hoje é 20% de inspiração e 80% de regeneração?
As proporções de Eno poderão ser algo falíveis mas será um facto que a tabula rasa aonde nada se inscreveu, aonde não houve um antes, uma qualquer variada influência é para mim inexistente. Considero ser justamente nas miscigenações e “reciclagens” que se poderão encontrar outras vias ou formas. Desde que não caia em algo que me afecta negativamente que é a colagem – a manta de retalhos de referências mais ou menos demonstrativa. Posto isto é um facto que vivemos uma época de tremenda confusão estilística e estética em que o poder da “máquina” manipula todo o pré-existente numa amálgama abusiva de acordo com critérios globalizantes de gosto percentual de índices de audiência. Em que a tecnologia acabou por, a par de todas as vantagens e avanços, determinar um facilitismo e nivelamento por baixo nesta propagada “democratização” de meios. Considero assim que, entre outras práticas, é a música improvisada, feita no local e no momento, a via possível para o renovar e o reacreditar no fenómeno musical vivo e actuante hoje.

Com o seu espírito libertário e criativo, consegue prever que caminhos musicais estará a percorrer daqui a dez ou quinze anos?
Se resistir o suficiente para lá chegar… a programação é difícil senão impossível. A continuada procura de outras formas e outras experiências. Um maior investimento em transdisciplinaridades que envolvam o movimento e a interacção tecnológica com o som e a imagem. Dedicar mais ao meu trabalho plástico em instalações que utilizem materiais tradicionais em confrontação / diluição com as mais recentes técnicas de vídeo e computação de imagem – e aonde, obviamente, a manipulação e “escultura” sonora será uma constante…

Entrevista conduzida por Victor Afonso e publicada na revista Hora TMG (Guarda)

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